Lacosta – Parte B

(Trecho anterior: clique aqui.)

Lacosta voltou os olhos para a beira do mar. Homens pescavam com suas compridas varas, uma distância de 50 metros separando uns dos outros. Observavam atentamente o mar e a linha. Alguns já estavam com o samburá quase cheio, outros não tiveram tanta sorte. Agradeceu em silêncio por não fazer parte do grupo de coleta de alimentos do turno de hoje. Não gostava de procurar mariscos e tampouco lhe apetecia pescar num dia como este, com a água do mar coberta por uma espuma escura e mal cheirosa por causa do excesso de algas.

A necessidade de sobrevivência os havia organizado. Os prisioneiros compartilhavam tarefas e conhecimentos, era o que os garantia. Estavam todos abandonados a sua própria sorte, esta compreensão os uniu. O Estado e a opinião pública não se importavam com eles, eram realmente um estorvo. E poderia ser pior se os fuzilamentos que eram feitos até a poucos anos atrás não tivessem causado um onda de insegurança na população civil. Os militares, para não perder o controle da situação, restringiram a senteça de morte aos poucos casos que julgavam mais graves. Na maioria destes casos, grave poderia não ser a causa do fuzilamento, mas a repercussão dos atos do executado. Todos os demais eram enviados para prisões como aquela, onde ele era apenas mais um. Mas especialmente ali na Prisão Joseph Goebbels, restrita a prisioneiros políticos considerados inimigos do regime, era mais em meio a homens qualificados, íntegros e independentes. Cada um deles fora de um modo ou outro um soco na cara do regime vigente.

Um dos homens dançava com um grande peixe na mão, feliz pela sorte na pescaria. Lacosta entendia aquele sentimento, e sorriu ao lembrar do pequeno pé de tomate que estava cultivando com tanto cuidado. Além das dificuldades climáticas, seus maiores inimigos eram os companheiros de cárcere, sempre famintos, dispostos a comer qualquer coisa que não viesse do mar. Mas naquele ambiente inóspito, ainda que tivessem sementes não teriam condições de plantar qualquer coisa em quantidade suficiente para alimentar a todos. Por isto, se achava um felizardo. Fazia expedições frequentes as ruínas das construções que estavam por toda a parte, sempre em busca de algo que pudesse aproveitar, algo que pudesse ser útil agora ou no futuro. Numa destas acabara encontrando uma embalagem de molho de tomate, com o que restara dele formando uma espécie de bolor misturado ao pó das paredes derrubadas e a areia que estava por toda parte. Olhando atentamente percebeu cinco ou seis sementes e guardou-­‐as. Ao chegar na construção que habitava, um lugar que por ora eram apenas escombros mas que algum dia alguém chamou de lar, preparou com todo cuidado um arremedo de vaso com a melhor terra que pudera encontrar e plantou as sementes. De seu esforço aquela plantinha única nascera. Não era pela vontade de comer um tomate, era por ter feito algo, por cuidar e proteger aquela planta. Estufou o peito de orgulho, enquanto o vento gelado lambia seu rosto.

Sentou-­‐se na borda da torre. A passagem do tempo era diferente quando estava ali, não era a toa que este é o seu local preferido. Os dias se arrastavam devagar na rotina da sobrevivência, e seu temperamento solitário o afastava bastante do convívio de seus companheiros de cárcere. Já faziam oito anos, dois meses e seis dias que tinha sido transferido, depois de um julgamento padrão do regime. Perguntou-­‐se mais uma vez se valera a pena. Olhou para a areia mais abaixo, que rodopiava para cá e para lá com o vento. Sim, claro que sim. Manteve sua integridade, manteve-­‐se fiel a seus princípios. É sempre difícil ser corajoso, e mais difícil ainda quando os inimigos são poderosos. A maioria das pessoas se acomoda em seus nichos de conforto, procuram se manter suavemente sobre o muro. A covardia é o pior dos defeitos, pois cala quem somos. Mas ele não se calara…

(Continua)

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